Jogo do Poder no Discurso do Jornalismo Esportivo - Artigo que cita atuação do Jornalista Edinei Dantas no Jornal A Tarde é selecionado para Encontro Nacional



O JOGO DO PODER NO DISCURSO DO JORNALISMO ESPORTIVO: A POSSE DA FALA DA HIPERFONTE E O EFEITO DE PAUTA AUTOMÁTICA

Paulo Roberto Leandro[1]

Resumo: A produção de significados nos jornais ajuda a organizar a percepção de mundo da comunidade esportiva a partir da recepção do noticiário. As rotinas de processamento da notícia seguem as regras gerais de outras editorias e impõem interpretações da realidade como se fossem verdades, em textos construídos a partir da matéria-prima de informações oferecidas pelas fontes, que são as pessoas ou entidades autorizadas a produzir sentido no discurso construído e reinterpretado pelos jornalistas. Neste artigo, verificamos como o discurso produz poder e os diversos saberes (Foucault): envolvidos na disputa pela notícia entram em conflito incessante, tendo a hiper-fonte, como chamamos o dirigente de clube, na condição de principal vencedor, nesta luta por impor uma vontade de verdade (Nietzsche).

Palavras-chave: poder, discurso, jornalismo, esportivo, saberes, conflito, verdade. 

1.      A rarefação das redes de poder e o discurso no olhar de Michel Foucault
O poder, para Michel Foucault, é um conceito reinterpretado das concepções clássicas que o confinavam ao palácio. Para o pensador francês, o poder espalha-se e é construído em toda a sociedade, como numa metáfora de fios de energia elétrica que levam as cargas de uma subestação para as residências. Tomamos a este autor a ideia de rarefação do poder, ao pressupor que todo contato entre grupos sociais ou entre indivíduos consiste em uma relação de poder, que incide e é impacto pelo macropoder dos governantes e instituições reconhecidas e legitimadas. Torna-se insustentável, exceto se for utilizada a força coercitiva, o governo central que não leva em conta as pequenas governabilidades do cotidiano. O poder alcançaria, assim todos os grupos sociais, em quaisquer circunstâncias, de forma incessante e, o mais grave, muitas vezes imperceptível, banalizado como ‘normal’ pelo que se entende como ‘senso comum’.

Ao romper com a tradição de enxergar o poder como uma instância superior da sociedade, o pensador francês o desterritorializa de sua dimensão institucional, associada ao Estado. É um poder que transborda e se entranha, espalha-se como uma enchente, difuso, descontínuo, incoerente. Foucault pensou o poder como uma relação de forças do cotidiano, entre pessoas e grupos, e não somente a autorização para governar que alguém cede a outro, ou evita ceder, no exercício da política maior, da democracia representativa, uma concepção contratual de disputa pelo comando.

Seria uma manobra arriscada carimbar Foucault com algum rótulo para coloca-lo em qualquer prateleira ou escaninho acadêmico. Há quem o considere estruturalista, pós-estruturalista ou pós-moderno, mas em respeito ao legado deixado pelo professor, optamos por deixa-lo sem rótulo, respeitando o fato de que ele mesmo sentir-se-ia embaraçado ou mesmo indeciso ao tentar se auto-filiar em alguma tendência de discursos, uma vez que ele é crítico desta produção de sentido geradora de poder através do saber. Vamos representá-lo, neste artigo, como um caçador de pressupostos que exerce implacável fiscalização dos discursos envolvendo redes de poder em toda parte onde as encontre, embutidas nos discursos que ele admiravelmente estudou e denunciou como arbitrários e incoerentes em sua vasta obra. 

O poder, para Foucault, habita perigosamente cada um de nós, até mesmo em sociabilidades despretensiosas, como um passeio com a família, em que se intensificam a relação entre pais e filhos, até as estratégias de concorrência entre empresas e profissionais no mercado. Neste artigo, tomamos como corpus uma amostragem aleatória de situações das quais o próprio pesquisador participou diretamente como testemunha e sujeito na condição de jornalista esportivo, além de outras demonstrações retiradas de seu trabalho de arquivista que tem como objeto de pesquisa a torcida de futebol. Todo o material encontra-se documentado para conferência.

Este poder, que se dissemina, não apenas reprime, interdita, proíbe, censura, impede, mas também constrói mecanismos de dominação, com base em ações positivas de festa e alegria[2].

  1. A briga pela legitimação de um discurso entre as redes de poder do futebol

É neste viés, situando o futebol no contexto de exercício disciplinador[3], que este trabalho propõe interpretar, com a brevidade que reduz seu alcance, o ambiente esportivo como manifestação cultural permeada por relações de poder, capaz de se refletir nos privilégios da fala, como se pode verificar no cotidiano da produção de notícias esportivas nos jornais impressos na Bahia[4]. O discurso da crônica mostra que o poder não é homogêneo: está disseminado em redes de poder.

O futebol vem cumprindo, desde a recriação na era moderna, seu papel de ajudar a organizar a mão-de-obra em posições específicas, visando a um melhor rendimento, por ser inevitavelmente praticado em conjunto. Repete, dentro das leis e regras obedecidas dentro das quatro linhas do retângulo verde gramado, de forma metafórica, mas com força de imposição de um comportamento, o que se observa nas linhas de montagem das fábricas e nas unidades econômicas em geral, dentro do sistema capitalista. Cada qual exerce seu papel, como no apertar de parafusos ou na colocação de uma peça qualquer, em uma fábrica de automóveis. Assim, todo um discurso de biopoder, ou de saúde, bem-estar e organização associados ao futebol é um mecanismo lúdico de aperfeiçoamento do potencial do operariado nas fábricas da Inglaterra, onde nasceu o futebol contemporâneo em 1853.

Mas, como sustentar a importância e a justificativa deste e de outros pressupostos que constroem o perfil do futebol como ‘association’, nome da primeira liga criada na Inglaterra antes da difusão do chamado ‘nobre esporte bretão’? O que faz as pessoas acreditarem que o esporte mais popular do mundo deve ser jogado desta e não daquela maneira? Quais são os grupos de poder que disputam a hegemonia da fala e o direito ao discurso capaz de legitimar os esquemas táticos, o poderio de clubes e seleções, a idolatria a determinados jogadores elevados à condição de craque? Como o discurso permeia, constrói, consolida o ‘fute-poder’, controlado pelos dirigentes de clubes e seus parceiros comerciais?

Para seguir nossa investigação, vamos averiguar quem pode falar no ambiente do futebol.  Esta é a pista ou a senha para acessar as redes de poder que se batem pela posse da bola, ou, no caso, pela posse da fala e dos lucros que o futebol profissional produz. Quem é capaz de dizer? Quem tem a autoridade de dizer o que as palavras dizem?[5] Quem são os sábios ou os detentores do poder de representar o futebol em um discurso capaz de fortalecer os lastros de poder?

  1. O cabo de guerra entre redes de poder na disputa pela posse da fala
Antes de mais, vamos estabelecer um pressuposto: a notícia não surge, por si, como por encanto, e bastaria ao jornalista apanhá-la no mundo real como uma flor no jardim (TUNSTALL e TUCHMAN). O que se observa, na empiria do jornalismo esportivo diário[6], é a fricção de interesses entre vários campos da atividade humana, além do jornalismo. Ao jornalista, compete aplicar os princípios de veracidade, atualidade, interesse, importância e inusitado[7], conforme se aprende nos cursos superiores de jornalismo, fornecedores de diploma, a fim de identificar se um fato deve ser noticiado ou não. Ocorre que, outras redes de poder também disputam o controle sobre o discurso, cada qual com suas especificidades. Eis algumas destas redes de poder que exercem nos fatos uma força, puxando cada qual para seu lado, como num desenho de um cabo de guerra, brincadeira infantil em que grupos ou crianças puxam uma corda para mostrar que têm mais força sobre os adversários:
(I)                         Publicidade, de onde advém aporte financeiro e o conseqüente interesse de seus anunciantes na divulgação de determinado atleta associado à marca; os grandes anunciantes passaram a ocupar inclusive as camisas dos times, antes chamados ‘mantos sagrados’, tal a importância de dimensão de alcance religioso compartilhada no senso comum das arquibancadas. Até na parte traseira dos calções, na região dos glúteos, já se aplicam anúncios. Nos jornais, os anunciantes podem influenciar na edição, ao super-valorizar seus produtos expostos nas camisas dos clubes. Como exemplo extremo, o Esporte Clube Vitória passou a chamar-se, em 1997, de Vitória-Excel, por associar-se ao Banco Excel Econômico, que custeou as despesas de contratação do jogador tetracampeão mundial Bebeto.  A CBF e seus negócios com a Nike chegaram a provocar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Congresso Nacional. Todos os clubes têm alguma história envolvendo negócios com empresas dentro da perspectiva da busca do lucro no mercado do capital, mas são raros os que conseguem sucesso, pois as variáveis ‘tamanho da torcida’ e ‘influência na mídia convencional’ são eliminatórios para a maioria das agremiações.

(II)                      Marketing, com o interesse das campanhas de promoção e vendas de marcas e produtos; pejorativamente nomeados ‘marqueteiros’, os integrantes deste grupo de poder procuram convencer os jornalistas da relevância de suas ações nos clubes. Uma agremiação do porte do Flamengo do Rio de Janeiro passa a ter uma importância estratégica para este grupo, o que pode ajudar a entender a grande exposição deste clube em jogos seguidos transmitidos pelo canal aberto de televisão, que detém os direitos de transmissão contribuindo para a concentração de renda, enquanto outros clubes, por não terem o mesmo apelo popular, recebem menos recursos na partilha, embora enfrentem, por força de tabela, os mesmos clubes de maior poder financeiro, contrariando uma das regras básicas do desporto. Em Salvador, o Estádio que homenageava o governador Octávio Mangabeira, por ter sido a principal autoridade no período da construção da Fonte Nova, em 1951, teve seu nome alterado para Arena Itaipava, por conta do interesse da cervejaria que contratou por 10 anos o direito de utilizar o estádio, mediante a garantia da ‘sustentabilidade’, conceito construído pelos profissionais de marketing, para justificar, no seu poderoso discurso, o poder de beneficiar-se do negócio fechado com o governo do Estado. A Arena foi inaugurada em maio de 2013, com uma goleada do Vitória, por 5x1 no Bahia.   

(III)                   Diretoria da empresa, com o interesse em dar visibilidade a fontes de informação que pertencem ao círculo pessoal de amizade dos proprietários ou que viabilizem estratagema de ordem comercial ou política. Há fontes que, por afinidade ou parceria comercial, têm poder de dirigir ou interferir na pauta. Uma construtora de Salvador chegou a vetar um caderno já impresso do jornal Correio da Bahia em 1999. A jornalista Linalva Barbosa, editora do suplemento, já falecida, vazou as informações para os colegas da Gazeta Mercantil, e o material censurado foi veiculado no suplemento Gazeta da Bahia. Uma outra construtora pediu e foi atendida para afastar o jornalista de A Tarde Diego Aguirre, o que gerou protestos entre os profissionais da categoria em 2008. Outro exemplo de confronto pela notícia deste segmento é a supressão de notícias de irregularidades nas negociações de jogadores por parte do Esporte Clube Vitória, em série produzida pelo jornalista e policial Edinei Dantas, em 2004. As irregularidades incluíam um dirigente do Vitória, que era amigo de um dos proprietários do jornal, daí o pedido do veto, feito pelo editor-chefe ao autor, então coordenador do suplemento esportivo A Tarde Esporte Clube.

(IV) A fotografia tem a força da imagem que produz seu sentido e compete com o conteúdo do texto ou o complementa e ajuda a reinterpretar; a rede de poder repórteres fotográficos, por serem os profissionais responsáveis por registrar o que convencionamos chamar ‘realidade’, tem sua força na edição, por conta da crescente necessidade de ilustração com imagens que produzem percepção de movimentos e cores, que constituem a principal característica do jornalismo contemporâneo impresso e online.  

(V)             Leitor, quando se organiza em grupos ou envia mensagens para o jornal; Daí, surge a percepção que o jornalista faz do leitor, pois é deste método intuitivo desenvolvido na empiria diária do serviço que ele distingue o fato de interesse social, e portanto, noticiável. O jornal A Tarde reconheceu a força deste grupo de poder ao criar o primeiro Conselho de Leitores do jornalismo baiano, com a escolha aleatória de integrantes do público aficcionado do tabloide A Tarde Esporte Clube. O Conselho foi criado em 31 de agosto de 2003 e funcionou durante seis anos. Todas as atas estão preservadas num caderno de notas no acervo do autor. As seções Megafone e Brado, publicadas no mesmo periódico, bem como a Camisa 12 da Revista Placar, de alcance nacional, impressa pela Editora Abril, são outros exemplos extremos da influência do leitor na formação deste cabo-de-guerra para construção do que conhecemos por ‘notícia’. A crescente interatividade provocada pela Revolução Virtual[8] também fortalecem esta rede de poder chamada ‘recepção’, pois a comunicação passou a ser exercida do modelo ‘um-para-muitos’ para o formato ‘muitos-com-muitos’, gerando uma fragilização do jornalista e um fortalecimento do leitor como capaz de divulgar, informar e participar da produção da notícia. No ambiente esportivo, este contexto é agravado pelo fato de os leitores serem testemunhas dos fatos que os jornalistas escrevem, pois assistem aos jogos e até aos treinos, além da paixão que muitas vezes conduz a percepção do fato pelo leitor que ‘vê’ o produtor de conteúdo como ‘adepto’ do outro time[9], em um tipo de delírio que pode considerar-se persecutório, mas muito comum nas conversas e comentários de torcedores sobre o desempenho de profissionais de comunicação.

(VI)          Setores Industriais e de Logística da empresa, entre outros. Estes setores parametrizam a produção jornalística com a imposição de seus horários. Se o jornal precisa estar nas bancas da cidade às 5h30min, para que tenha mais chances de venda, a gráfica necessita imprimi-los e encaderná-los até determinado horário, e assim para trás, na rotina produtiva, até alcançar o fechamento das redações. Já houve casos de estresse e desconforto extremos nesta refrega entre o setor gráfico e a produção jornalística. A Folha de S. Paulo, em 1986, chegou ao exagero de noticiar o andamento de um jogo entre Palmeiras e Santos, dois dos principais clubes brasileiros, “até os 39 minutos do segundo tempo”. A notícia do jogo não pôde sair completa porque o horário de fechamento imposto não coincidia com a finalização do prélio; nem o resultado final saiu! Também há casos de non-sense em que a página de esportes teria de fechar à zero hora, antes do final de uma rodada pela Copa Libertadores. Este episódio ocorreu durante o fechamento de uma edição esportiva do jornal Correio em 2007: os profissionais preferiram descumprir a deadline e cobrir toda a rodada. Já as contratações dos campeões mundiais Vampeta e Edilson foram noticiadas no A Tarde Esporte Clube, depois de o autor, então editor-coordenador do suplemento, voltar para a redação e reabrir a página, pois a notícia ocorreu por volta das 21 horas, após o fechamento do caderno. No dia seguinte, foi chamado à atenção pelo editor-chefe da redação porque o jornal vendeu 2 mil exemplares a menos por ter chegado atrasado às bancas, ainda que com o noticiário mais completo que os concorrentes.

(VII)       Jogadores podem dificultar ou facilitar o acesso aos jornalistas. No modelo contemporâneo, são sorteados para a entrevista coletiva, e bem posicionados à frente das logomarcas dos patrocinadores, como forma de forçar a exposição das imagens junto aos meios de comunicação. Antes, o discurso dominante era que ‘jogador falava qualquer coisa’, portanto as entrevistas teriam resultado óbvio, num momento histórico em que o discurso desta fonte poderia contrapor às versões dos dirigentes de clube; a situação muda com o interesse do mercado pela exposição das marcas, a partir de 1987, quando a Rede Globo de Televisão alia-se ao Clube dos Treze, formado pelas agremiações mais influentes, para promover uma reforma geral no futebol, altamente concentrador de riquezas neste novo formato de asfixia dos campeonatos estaduais que geravam mercado de trabalho para diversas categorias profissionais. Desde então, os jogadores escolhidos ou sorteados, passaram a conceder entrevista em tom solene, após as partidas, e seu discurso é aproveitado pelos jornalistas como matéria-prima para suas reportagens, associando o jogador à logomarca que os sustenta. Antes ventríloquos, os jogadores passaram a ter status de chefes de Estado, com toda a pompa e etiqueta nas entrevistas.

Desta forma, a proposta de cada um destes discursos só encontra coerência em si mesmos, sem possibilidade de confrontação com a objetividade. Ou seja, não se pode validar um discurso como dotado dos pressupostos ‘verdadeiros’, tomando-se aqui o conceito de ‘verdade’ como relacionado às construções ideológicas em determinadas épocas e localidades. Utilizamos, nesta proposta de crítica a este sistema de valores, o conceito de ‘vontade de verdade’ de Friedrich Nietzsche[10] para fortalecer uma implacável caça a todos os pressupostos, criados para atender interesses de grupos sociais dispostos e organizados para manter e ampliar suas vantagens, ou tomá-las de outros grupos. Também verifica-se, brevemente, como o abuso de aplicação dos pressupostos consagrados como ‘verdades’ contribui para instalação de redes de poder, em dispositivos que negam a condição de liberdade do ser humano, como defendido na obra de Michel Foucault[11].

4.      A hiper-fonte dirigente como controladora do discurso esportivo

Muito embora, como vimos, vários setores disputem a hegemonia da notícia, o jogo do poder de dizer o que as palavras dizem em futebolês tem seu campeão: o dirigente de clube. O privilégio concedido ao discurso do dirigente de clube gera o fenômeno da hiperfonte[12]: uma superdimensionada fonte de informações, cuja palavra vale mais, por conta de sua posição na hierarquia do futebol e pela necessidade diária de o jornalista buscar informações para escrever suas reportagens. A hiperfonte ‘dirigente’ ou ‘cartola’ torna-se, assim, o suposto sábio que diz o que a coisa é no futebol. Denominamos hiper para representar o seu poder, pois além de situar-se na alta hierarquia do clube, é de seu discurso que o jornalista extrai suas ‘vontades de verdade’, como vimos anteriormente. Seu discurso é legitimado nas manchetes, nos leads e na condução de pautas e reportagens em uma posição superior ao de outras fontes, notadamente os torcedores, que são tratados, assim, apesar de toda a interatividade registrada nos anos mais recentes, como o rebotalho, a massa ignara, aqueles que existem para consumir e manter a máquina produtiva do futebol em funcionamento, gerando lucros, nem sempre bem aplicados no fortalecimento dos clubes pelo que eventualmente se apura e se sabe mas nem sempre se pode publicar pois o discurso do jornalista é interditado pela imprensa, quando ocorre a pressão maior de outras redes de poder (ver a metáfora do cabo-de-guerra, citada anteriormente). Como exemplo de hiperfonte, o presidente do Esporte Clube Bahia Paulo Virgílio Maracajá Pereira pedia aos radialistas para escutar as entrevistas dos jogadores aos radialistas antes de ir ao ar para evitar a circulação de informações que não o agradassem.[13] Como exemplo de absurdo da lógica de dominação das hiper-fontes e seus parceiros comerciais, times profissionais da Série A têm sido obrigados a jogar ao meio-dia para favorecer interesses da televisão, contrariando princípios elementares da educação física.

Para escrever seus textos, os jornalistas precisam ouvir suas hiperfontes, que controlam o poder de dizer o que a coisa é no futebol. Assim, é ao dirigente, a principal hiperfonte, que o jornalista procura, ao precisar saber de: (I) decisão administrativa, relacionada à contratação, premiação ou demissão de jogadores e treinadores; (II) ações de bastidores que resultem em modificações em tabelas de campeonatos, escalações de árbitros e regulamentos de competições; e (III) planejamento de marketing e empresarial, com a adoção de parcerias, orçamento envolvendo a marca do clube e publicação de periódicos impressos ou na internet. A obtenção destas informações é marcada por uma negociação diária, ora tensa, ora de complementariedade, que pode levar: (I) ao desgaste do profissional, junto à hiperfonte, caso apure reportagens investigativas e escreva textos mais críticos; (II) ao controle da informação, caso o profissional escreva com base na interpretação do dirigente, como forma de manter o bom relacionamento e desenvolver uma parceria com a hiperfonte; (III) como resultado do atrito entre (I) e (II), o texto torna-se contaminado pelo interesse de visibilidade da hiperfonte, cuja palavra tem efeito de verdade, seguindo o fenômeno de assimilação ou encampação[14] das informações por parte do jornalista que as assume como certas.

O jornalista terá problemas se não garantir a palavra da hiperfonte, que pode estar disponível ao jornal concorrente[15]. A prolongada exposição de um profissional, impactado pelo exposto no item II, produz a construção de um roteiro de apuração de informações que pode se denominar ‘auto-pauta’. O repórter percebe a redução de sua autonomia no cumprimento da pauta, até o limite em que começa a se deixar pautar pela interpretação do dirigente, a hiperfonte a quem deverá procurar no dia seguinte para nova reportagem, pois o jornal é diário e exige o abastecimento cotidiano das páginas.

Como agravante para esta problemática, as editorias de esporte se utilizam da prática do setorismo, sistema pelo qual um jornalista fica encarregado de um “setor”, ou seja, um clube ou federação, durante longos períodos, a fim de supostamente facilitar o cultivo da hiperfonte e a obtenção de informações “seguras” para escrever os textos dentro de prazos industriais cada vez mais curtos, o que se configurou, no ambiente das redações, como o prazo de ‘deadline’, o horário de conclusão da página para seguir ao setor gráfico com o objetivo de impressão. No sistema de rodízio de repórteres, a hiperfonte dirigente teria de se relacionar, a cada dia, com um profissional diferente.

No estudo das rotinas de produção da notícia, a briga pela palavra desenha uma figura já conhecida, mas ainda plena de significado, como dissemos anteriormente: o cabo-de-guerra, brincadeira na qual dois grupos tentam puxar uma corda em direção a pólos opostos. Quando está consciente dos critérios de identificação da notícia e atento a seu código deontológico[16], o jornalista tenta reduzir o impacto da paixão clubística e procura puxar a corda para o lado da informação de qualidade, aproximando sua interpretação das circunstâncias da realidade relatada, mediante a crença em princípios como objetividade e neutralidade.

Mas apesar de a Constituição Federal de 1988 proteger o direito à informação como bem-público, os dirigentes, do outro lado da corda, no cabo-de-guerra da notícia, têm seus projetos de poder, dentro do clube, e fora dele, no relacionamento com outras esferas de poder maior. Parte destes dirigentes, também conhecidos pejorativamente como “cartolas”, desenvolve carreira política: a voz autorizada é identificada nos jornais como a voz do clube, passando aos torcedores a ideia de que aquele que fala nos representa.[17] Este cartola diz (e não diz) o que interessa a seu projeto de poder.

Além de dominar pelo discurso hegemônico, as principais hiperfontes das páginas esportivas, que são os dirigentes do Esporte Clube Vitória e Esporte Clube Bahia, utilizam em suas campanhas eleitorais, os símbolos que os unem às agremiações, no imaginário das comunidades denominadas “torcidas”.[18] Os grandes contingentes de torcedores são também de eleitores dos dirigentes que formam a “Bancada da Bola”, como os jornalistas passaram a chamar o grupo de políticos relacionados ao futebol.

Exemplos notórios na história do futebol baiano são os de: (I) Osório Villas Boas, cujo hino de campanha era o mesmo hino do Bahia; (II) Paulo Virgílio Maracajá Pereira, que tinha entre os slogans de campanha, a frase “Quem é Bahia, é Maracajá”; (III) Ney Ferreira, em cuja gestão o Vitória tornou-se conhecido “bicampeão do silêncio”, por ter sofrido boicote dos meios de comunicação, mas manteve a identificação com o clube e a torcida; (IV) Raimundo Rocha Pires, que saudava a torcida, acompanhado de seu cão-de-guarda, vestido com as cores do clube; (V) Paulo Roberto Carneiro, que apropriava-se da marca do leão estilizado, símbolo de sua gestão; entre outros, como o jogador Raimundo Nonato Tavares da Silva, conhecido por Bobô, hoje deputado estadual.

Considerações finais

 As hiperfontes tornam-se representativas, ao passo que os torcedores, afastados dos centros decisórios e segregados à arquibancada e à cadeira de plástico da arena, tomam a feição de fonte popular, cuja serventia se dá às enquetes e concessões para estes personagens anônimos darem uma opinião de menor força na hierarquia das páginas esportivas. O jogador, por sua vez, teria desenvolvido técnicas refinadas de reprodução do senso comum nas declarações públicas, como forma de escapar às cobranças dos dirigentes, preocupados em controlar a informação. A fama de incapaz de articular o pensamento pode ser injusta com uma história de resistência. O discurso do poder emerge desta rusga intermediada e legitimada pelo jornalista, cuja autonomia é limitada pelos campos vizinhos de produção de notícia. Além da palavra, existe alguma significação, uma voz autorizada que domina a cena. A hiperfonte utiliza este poder de dizer o que a coisa é no ambiente esportivo e faz do domínio da palavra sua maior oportunidade de desenvolver carreira política e fortalecer seus projetos pessoais dentro dos clubes de grande torcida e eleitorado, articulando o poder formal ao micropoder do futebol.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FAIRCLOUGH. Norman. Language, ideology and power. London: Longman, 1995
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber, 7ª edição. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1995.
FOUCAULT, Michel. Aula de 17 de março de 1976. In: Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud e Marx. São Paulo: Princípio, 1997.
FOUCAULT Michel. As Palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas. Tradução. Salma Tannus Muchail. Martins Fontes. São Paulo, 2000.
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LEANDRO, Paulo Roberto. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia (Edufba). Coleção É futebol. ‘Negô! Baêa! A invenção da torcida baiana’, 2015.

MACHADO, Roberto (org.) . Michel Foucault. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal Ltda., 1999.
NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: editora Escala, 2008.
----------------- O anticristo. São Paulo: editor Martin Claret, 2000
-----------------  Assim Falava Zaratustra. São Paulo: Hemus Editora, 1985.
----------------- O viajante e sua sombra. São Paulo: editora Escala, 2007.
----------------- Humano, demasiado humano. Um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
---------------- Origem da Tragédia. Lisboa: Guimarães Editores.
---------------- Ecce Homo. Porto Alegre: L & PM Editores, 2006.
---------------- A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
---------------Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
-------------- A filosofia na era trágica dos gregos. Porto Alegre: L & PM Editores, 2011.
--------------- Aurora. São Paulo: editora Escala, 2007.
-----------------  Schopenhauer Educador. São Paulo: editor Escala, 2008.
---------------- Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de Potência, Parte I. São Paulo: editora Escala, 2010.
NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de Potência, Parte II. São Paulo: editora Escala, 2010.
TRAQUINA, Nelson. Teorias do Jornalismo, volume 1. Florianópolis: Editora Insular, 2004.
TUCHMAN, Gaye. Making news. New York: Free Press, 1978, P. 54-56.
TUNSTALL, Jeremy. Journalists at work. London: Constable, 1971.



[1]           Paulo Roberto Leandro é doutor em Cultura e Sociedade (2011); mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas (2003); bacharel em Comunicação com habilitação em jornalismo (1986). Todos os títulos pela Universidade Federal da Bahia (Ufba). Jornalista em atividade incessante há 32 anos; professor universitário; atualmente exerce o cargo comissionado de assessor-adjunto de Comunicação do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. e-mail: pauloleandro.jor@hotmail.com
Plataforma Lattes http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4284453J3
[2] MACHADO, Roberto (org.). Michel Foucault. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal Ltda, 1999. P. XV.
[3] Sobre os mecanismos disciplinares do poder, consultar FOUCAULT, Michel. Aula de 17 de março de 1976. In: Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 199. P. 299-315.Cf também Vigiar e Punir e A ordem do discurso
[4] Além de todo o acervo acumulado em 32 anos de produção de conteúdo incessante, e coleta cotidiana de peças de pesquisa, o autor trabalha com uma amostragem de 326 textos de cobertura de jogos entre os clubes baianos Esporte Clube Bahia x Esporte Clube Vitória, entre 1932 e 2011.
[5] FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber, 7ª edição. Rio de Janeiro: Forense-universitária, 1995. P. 25-34
[6] O autor foi jornalista esportivo nas funções de repórter e editor de diversos periódicos impressos e jornais online. Entre os destaques, jornal O Estado de S. Paulo, Correio (antes e depois da reinvenção do jornal em 2008), A Tarde (na criação do suplemento A Tarde Esporte Clube, em circulação, desde 2003), entre outros. Durante a construção da longa carreira, guardou cerca de 1,5 mil peças e volumes que hoje subsidiam a construção de teoria para conhecimento das rotinas produtivas do jornalismo esportivo e sua relação incessante com o processo de reinvenção da torcida de futebol, seu objeto de estudo. Acervo disponível para validação, conferência e pesquisa por parte de estudiosos do jornalismo esportivo impresso.
[7] TRAQUINA, Nelson. Teorias do Jornalismo. Volumes 1 e 2. Florianópolis: Insular, 2005.
[8] CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura. Vol. 1 – O Poder da Identidade. São Paulo, Ed. Paz e Terra, 1999.
[9] Cf., do autor, LEANDRO, Paulo R. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia (Edufba). Coleção É futebol. ‘Negô! Baêa! A invenção da torcida baiana, 2015.
[10] A “vontade de verdade” é a crença em paralisar o movimento incessante do mundo da vida para dar coerência a sistemas lógicos de explicação da ‘realidade’, como se, na hipótese de dirigirmos a vida, estivéssemos sempre puxando o freio de mão, semelhante ao sistema utilizado nos veículos auto-motores. Esta pretensão de paralisar o movimento da vida com o frágil entendimento da razão provisória gera a sensação de entendermos o que se passa. No entanto, ao tentarmos dar coerência ou sentido de verdade, o movimento da vida já o modificou e o tornou inócuo, na visão nietszcheana. Como é de praxe, na bibliografia de Nietzsche, o conceito aparece em vários livros, sem que se possa proceder um ordenamento razoável em citações ditas ‘normais’. Diante do exposto, citamos nas referências bibliográficas, todos os livros em que ele se utiliza do conceito, transferindo ao leitor, inevitavelmente, a tarefa de buscar os fragmentos nos aforismos em que a ‘vontade de verdade’ é utilizada pelo irrequieto autor vitalista.
 [11]O amplo legado de todos os livros de Foucault pode ser facilmente baixado da internet com a utilização do buscador Google. Para este artigo, utilizamos As Palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas. Tradução. Salma Tannus Muchail. Martins Fontes. São Paulo, 2000.
[12] LEANDRO, Paulo Roberto. O jornalista e o cartola: perfil do jornalismo esportivo impresso na Bahia e sua resistência ao campo da política. Salvador: Facom, Ufba, 2003. Dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas. p. 124-150. Livro revisado e pronto para edição pela Assembleia Legislativa do Estado da Bahiadesde 2008; no entanto, não foi impresso por pressão de parlamentares junto ao editor, em razão do conteúdo contrário a redes de poder. A censura não surtiu efeito graças à web. O texto está disponível em http://poscom.tempsite.ws/wp-content/uploads/2011/05/Paulo-Roberto-Leandro.pdf
[13] Informação colhida em áudio fornecido pelo ex-jogador José Carlos Conceição dos Anjos, bicampeão brasileiro pelo Bahia em 19 de fevereiro de 1989. Assim como todas as demonstrações citadas pelo autor, todo o material está disponível no acervo do pesquisador e disponível para conferência e validação.
[14] FAIRCLOUGH, Norman. Language,  ideology and power. London: Longman, 1995. p.58
[15] GIULIANOTTI, Richard. Sociologia do Futebol. Dimensões históricas e sócio-culturais do esporte das multidões. São Paulo: Nova Alexandria, 2002. P. 158
[16] A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) reconhece o código, definido em encontro nacional de jornalistas. Ver em www.fenaj.org.br No entanto, o nome correto é deontológico (direitos e deveres). Ética seria o conhecimento que se aplica sobre cada problema no sentido de se verificar qual a solução mais justa para todos. Platão foi o primeiro a tratar sobre o tema, ao considerar a justiça (dike), o conhecimento (sofia), a moderação (sofrosine) e a andrea (firmeza) como as quatro virtudes que conduzem à ética e à felicidade.
[17] O discurso da hiperfonte parece alcançar um significado, mas ele produz significado. Não é o signo a ser interpretado: vale a articulação de significados no discurso do intérprete. Consultar FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud & Marx. São Paulo: Princípio, 1997. p. 13-30
[18] Embora a torcida tenha se construído como reduto masculino, a origem da expressão é feminina. Remonta ao estádio das Laranjeiras, em 1914, no Rio de Janeiro, onde um grupo de fãs do goleiro Marcos Carneiro de Mendonça, do Fluminense, levaram fitas roxas, da cor utilizada pelo então “guarda-metas”, e as ficavam torcendo, em meio a suspiros e gritinhos, no que se constituiu a primeira voz da arquibancada de que se tem notícia no Brasil. A cada defesa do ídolo, fita “torcida” e gritos em tom agudo. Sobre aspectos da história do futebol e sua relação com a cultura, consultar FRANCO, Hilário. A dança dos deuses. Futebol, sociedade, cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 

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