#Luto - Encontrado morto em casa, na Boa Viagem, Albergaria tinha quadro de depressão

Sempre que descrevia a Bahia, o antropólogo e historiador Roberto Albergaria de Oliveira conseguia unir descontração e um tom apocalíptico. Ontem, a região onde vivia na  Cidade Baixa amanheceu cinza, pesarosa e com um cenário que seria propício para suas análises, que eram sempre seguidas de gargalhadas fartas. Porém, a semana terminou sem o seu riso   na casa do bairro da Boa Viagem, onde  foi encontrado morto por amigos.
Aos 61 anos, Albergaria era professor aposentado da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e ganhou popularidade por suas participações como comentarista de assuntos do cotidiano baiano na Rádio Metrópole, onde atuou por 15 anos.
Albergaria escolheu a Cidade Baixa, em Salvador, para morar: irreverência e alegria se aliavam aos comentários inteligentes do professor e antropólogo baiano (Foto: Haroldo Abrantes/Arquivo CORREIO)
Ontem, quando o diretor de Tecnologia da rádio, Marcos Meira, resolveu fazer uma visita ao antropólogo, por volta das 13h30, pediu para o vizinho e amigo Sérgio Macedo para que o acompanhasse. Sérgio foi quem teve com ele pela última vez ainda com vida. “Ontem (anteontem) de noite estava com ele e conversamos sobre diversas coisas. Me despedi e disse que traria almoço para ele no outro dia”, contou Sérgio, que o considerava como “seu filho mais velho” – mesmo sendo mais novo  - e, inclusive, o levava para todos os lugares e tinha a chave de sua casa.
Os dois se depararam com o corpo do historiador caído de bruços. “Depois de 20 anos de amizade, ainda não caiu a ficha. Quando cair, vai ser difícil”, disse Macedo.
“Ele era hipertenso e tomava remédios. O que importa é que ele morreu íntegro e tinha uma cabeça muito boa. Era muito brincalhão e gozador. Mesmo sendo meu amigo, era um chato de galocha. Ele não dizia na cara, cuspia”, acrescentou o amigo. “Cê tá entendendo?!”, diria Albergaria  aqui para dar uma pausa no raciocínio, como costumeiramente fazia.   
Lamento
Uma vizinha que não quis se identificar revelou que Albergaria estava agitado no dia anterior. “Foi o dia todo assim. Ele estava muito estranho e desacreditado. Normalmente a gente o ajudava, por conta da cadeira de rodas (que ele estava em função do agravamento da sua locomoção), mas ontem ele não estava querendo a ajuda de ninguém. Chamamos a polícia durante o dia para tentar acalmá-lo e pela noite chamamos o Samu”, revelou.
De acordo com a delegada Marilena Lima, do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), que acompanhou a perícia, ainda não se sabe a causa da morte do antropólogo. “Não há indícios de violência. Na casa dele tinham algumas garrafas de uísque, cheias e vazias, e muitos medicamentos. Precisaremos esperar a avaliação do Instituto Médico Legal”.
Secretária de lar de Albergaria há 27 anos, Joana de Jesus contou que o seu último contato com o professor foi na última terça-feira. “Quando cheguei, ele já tinha ido. Tomei um susto, estou muito triste”, lamentou. De acordo com Joana, ele era muito sozinho e não tinha proximidade com a família. “Só conheci um irmão dele, que esteve aqui há 15 anos”, destacou.

Ele conta que Albergaria estava, nos últimos meses, sem  receber visitas, inclusive, da amiga e historiadora Consuelo Pondé. “Antes de morrer, ela chegou a me pedir para eu tentar convencê-lo de ir visitá-lo, mas não consegui”.Inteligência 

Amigo há mais de três décadas, o antropólogo e fundador do grupo Grupo Gay da Bahia (GGB), Luiz Mott, resumiu Albergaria como a inteligência mais provocativa e excitante da Bahia. “Ele desconstruía mitos sobre baianidade e sobre a mitologia afro-brasileira. Era um defensor da absoluta liberdade erótica e sentimental, e um anarquista e liberal da Bahia”.
Segundo Mott, o professor viveu com uma tia até uns 20 anos em um imóvel na região da Graça/Canela. “Com a morte da tia, ele vendeu o apartamento e comprou essa ampla casa, na Cidade Baixa, onde ele plantou diversas árvores”, lembra.
Era nessa residência, segundo Mott, que Albergaria tinha uma biblioteca, com uma coleção de dicionários com temas variados, além de obras de Maria Padilha, Pomba Gira e de Exu. O vizinho Sérgio também destaca sua paixão pelos livros, contando que ele tinha uma coleção de 16 mil títulos catalogados em seu lar. “Ele sabia de tudo um pouco”, relembra.
Em 2009, Albergaria fez palestra para profissionais do  CORREIO para falar sobre a mídia
(Foto: Marina Silva/Arquivo CORREIO)
Admiração 
O longo tempo de convivência na área acadêmica fez com que a professora associada do Departamento de Antropologia e Etnologia da Ufba Maria Rosário de Carvalho nomeasse  Albergaria como um “sujeito cultivado”.
Para ela, o que fazia dele um professor e colega de trabalho querido era o seu bom senso. “Ele fazia ironia do próprio corpo disciplinar, incluindo os próprios colegas e até os pais da antropologia. Ele respeitava, mas ao mesmo tempo não tinha limites”, declara.  
Apesar de afirmar nunca ter o visto triste, Maria Rosário disse que todos do departamento do qual fez parte de 1983 a 2007, antes de se aposentar, sabiam que Albergaria tinha um problema de saúde. “Ele tratava do assunto com algumas pessoas, inclusive uma certa vez me pediu uma ajuda quando eu estava em São Paulo. Ele não fazia segredo, mas também não gostava de falar sobre o assunto. Eu acho que ele gostava de viver e, lá no fundo, tinha medo de que algum procedimento médico desse errado”, comenta ela.
A dificuldade de locomoção - que reduziu a sua participação como comentarista da Rádio Metrópole, às segundas-feiras – era esperada e muito temida por Albergaria, segundo relatos de amigos. “Há uns 10 anos, ele chegou a me contar que tinha comprado uma arma para antecipar a sua partida quando se sentisse completamente incapacitado”, revelou Mott.
No mês passado, nos seus últimos comentários na Rádio Metrópole, Albergaria tocou no tema individualismo. A um desses comentários deu o título de “O herói de hoje é o egoísta que luta para salvar a própria pele”. No outro, defendeu um vazio existencial que pairava na cena cultural brasileira. “O ar que respiramos no dia a dia é cada vivente matando e morrendo pela salvação da sua própria pele, ou, o que dá no mesmo, trabalhando pela promoção da sua própria imagem”, disse.
Porém, como sempre, não fugiu de provocações políticas, neste último comentário, no dia 15 de junho, falou do “brasileiro frouxo”. “O buraco é bem mais em baixo do que imagina os insuportáveis coxinhas e petralhas que entopem a internet com as suas pataquadas que eles acham que são militantes”, atiçou Albergaria, que em seguida convidou os ouvintes para ligar para a rádio: “Agora me esculhambem mesmo que eu mereço. Quem está na chuva é para se queimar. Eu sou da nigrinhagem”, brincou.
Em suas participações na rádio buscava opinar sobre pautas do momento, sempre com irreverência. “Exercitar-se livremente no giletismo ou no viadismo, assumido ou não, é um progresso moral, é o resultado da evolução da sociedade ocidental. Não sou gay, mas sou simpatizante das causas dos fracos”, afirmou em um dos comentários à Rádio Metrópole.
mídia Albergaria sempre teve estreita relação com a imprensa baiana, brincava que era “peru de redação”. Para a jornalista Malu Fontes, amiga do intelectual, ele era sempre procurado por sua capacidade de traduzir o conhecimento acadêmico que possuía.
“Ele era um provocador, brincava com o próprio jargão da academia, falava sobre o comportamento e o ‘jeitinho baiano’, sobre a música que consumimos e sobre redes sociais de uma forma que tanto os seus pares quanto o vendedor de verduras da Feira de São Joaquim entendiam”, afirmou Malu. “Ele era um tradutor, um fingidor. Poderia até ser confundido com um Araken Show-man, mas não, era um estudioso e vivia muito bem informado, desde sobre o universo da sua Península Itapagipana, como diria ele, a temas internacionais”, completou.
Baianos lamentam morte de antropólogo
“Intelectual destacado. Figura pública da vida cultural da nossa cidade”. Foi com essas palavras que o reitor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), João Carlos Salles, descreveu o historiador e antropólogo Roberto Albergaria de Oliveira.
Colegas desde a época em que eram  professores da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Ufba, ele afirmou que, apesar do jeito brincalhão, as posições fortes e polêmicas de Albergaria eram sempre muito bem fundamentadas. “Nos levavam a refletir. É uma perda”, acrescentou.
Para o presidente da Fundação Gregório de Mattos, Fernando Guerreiro, a Bahia perdeu uma das suas inteligências mais brilhantes. “Erudito por formação, mas extremamente popular, irônico e sarcástico na popularização do seu conhecimento. A Bahia perde um descendente direto de Gregório de Mattos extremamente crítico e bem- humorado. Cheio de opinião, nunca fazia concessões e era implacável ao defender o jeito baiano de ser. A Bahia perde um legítimo representante da sua alma e estilo”.
O governador Rui Costa destacou o humor e a irreverência. “Albergaria fazia as pessoas refletirem sobre a vida e a sociedade, com bom humor e irreverência, suas crônicas e conferências vão deixar saudade. Meu abraço aos familiares e amigos neste momento de dor. Que Deus conforte a todos”, destacou.
O apresentador Mário Kértesz, com quem Albergaria dividiu muitas vezes os microfones na Rádio Metrópole, afirmou, em nota, ter perdido um amigo. “Politicamente incorreto, Albergaria recusava a sisudez do mundo acadêmico ao mesmo tempo em que levava conhecimento para muito além das barreiras da universidade”.
Nas redes sociais do professor, admiradores também se consternaram pela morte. “A Cidade Baixa vai dormir hoje mais triste, careta, burra e sem graça. Roberto Albergaria já nos faz muita falta. O Velho Manco da Ribeira foi ao encontro de suas Padilhas...”, postou o admirador Everaldo Neto.
Fonte: Correio*

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